Hamabronks

O rio

(ou a coragem que eu não quero)

Jesus queria atravessar o rio, mas seu jejum no deserto o fez fraco. Sua fé não seria capaz de guiá-lo através das correntezas. Elas eram muito maiores do que via em filmes de faroestes. Com passos curtos, coloca um de seus pés na água e sente ela encharcando lentamente seu tênis do Ben10, fazendo o frio subir pela sua perna, deixando seu coração cada vez mais covarde. Enquanto isso os estranhos que conheceu ali murmuram com urgência mandando ele seguir.

Na outra margem seu pai observa segurando tudo que eles acumularam em sua vida: algumas roupas, histórias, biscoitos e na outra mão um boneco do luchador Chavo Guerrero, ídolo da sua criança. José olha para o outro lado, tenta gritar baixinho que vai sempre proteger seu menino, enquanto isso seu corpo treme e ele não sabe se é de frio ou de incerteza. José nunca quis aquilo de verdade, ele ama muito seu filho, mas tudo seria diferente se não fosse ele e sua amada Maria ter falecido nas mãos da parteira.

Seus dois tênis já estão molhados e o frio já o machuca mais do que a fome. Suas pernas finas ficam evidente na calça que gruda empurrada pelas águas.

Um braço vira o rosto e respira, um braço vira o rosto e respira, um braço vira o rosto e respira.

Como se fosse um mantra, repete isso baixinho enquanto sente pequenas gotas de água quente e salgada entrando pelo canto da sua boca. Disfarça sua covardia mergulhando corajosamente, já era um homenzinho, dizia o seu pai. Uma braçada, duas braçadas. Sente saudades da sua vó. Uma braçada, duas braçadas. Lembra da sua casa e de dormir na sala vendo lucha libre até tarde. Uma braçada, duas braçadas. Do outro lado não consegue mais ver seu pai. Uma braçada, duas respira. Sente a água entrando pelo nariz.

As unhas encardidas apertam Chavo Guerrero com força. Os braços trêmulos duvidam que seja capaz de salvar o menino que é levado pelas forças inevitáveis da natureza. Seria a coragem de um pai mais forte que esse rio? Dois passos a frente, deixando no chão o boneco do luchador. Imagina o que pode ser de sua vida. Quem sabe não possa construir uma família? Viver uma vida digna? Talvez até um green card? Com a água até o joelho. Olha para trás e lembra do jornal. Onde cenas de crianças como seu menino presas em jaulas, enquanto o demônio laranja discursa. Seria ele um bom pai se desse para seu filho uma vida dessa? Na beira ele chora mais lágrimas do que correram naquele rio, abraça suas pernas como se fosse sua cria e esconde seu rosto entre elas. Mas logo é interrompido por um uivo de um coiote, que o apressa batendo em seus ombros. Não há tempo para isso.

Levado pelas águas, aquele corpo miúdo gira ironicamente como uma folha ao vento batendo em pedras pelo caminho. Um braço respira, um braço, um braço, um braço… Meu pai! Por que me abandonaste? José escuta uma voz entre a correnteza, mas sem olhar para trás, ele segue. Segue sabendo que deixou em seu caminho dois grandes luchadores.